Acordou cedo. Levantou-se com a lâmina do mau-humor a rasgar-lhe o ventre da disposição. Entrou na casa-de-banho e desafiou o espelho a reflectir as sombras que se acumulavam nos vincos do seu rosto. Ligou o chuveiro. Como se fosse uma vingança exercida sobre si próprio lavou o corpo com o esplendor feroz da água fria. Limpou o corpo como quem engraxa sapatos, em uma viela qualquer da cidade, ainda meia adormecida. Com a toalha ao ombro, foi assobiando "Night and Day", de Cole Porter, enquanto se preparava para fazer a barba. Passou a espuma pelo rosto, olhou, de novo, para o espelho, e, subitamente, desistiu de se barbear. Brincou com a espuma que lhe moldava o rosto. Viu-se com pera, com bigode e, esclarecido pelos reflexos da imaginação, lavou o rosto. Gostou de se ver com a barba levemente crescida. Depois, com os flirts dos desejos a aflorarem-lhe a consciência, mergulhou numa espécie de torpor melancólico. Vestiu umas calças de ganga coçada, uma camisa preta, umas meias brancas e calçou uns moucassins que, há muito, permaneciam abandonados entre o seu calçado. Pegou no telemóvel, ligou para o emprego e, sem hesitações, despediu-se. Retirou do seu guarda-fato uma pequena mala. Encheu-a com alguma roupa e com um par de sapatos velhos. De um canto do seu quarto, apanhou a sua mochila preferida e, nela, colocou dois livros que escolheu, ao acaso, na sua estante onde permaneciam esquecidos um número incontável de livros que os seus olhos se haviam esquecido de folhear. Passou os seus dedos pelos seus cabelos pretos e ondulados, escondeu os seus olhos esverdeados por detrás de uns óculos escuros e abandonou a casa onde vivia há vinte anos. Chamou um taxi pelo telemóvel e, já no seu interior, pediu ao motorista que o levasse para o aeroporto. Em um dos seus balcões comprou um bilhete para a Tailândia. Era o primeiro voo que saía do país. Sentou-se a um canto, esperando. Fugir de si próprio era o sentimento que, subitamente, se tinha alastrado pelo seu cérebro, cansado de se vestir com a monotonia da vida que era vivida sob o alcatrão de um vírus que lhe cegava a visão de um futuro com o qual deixara de pactuar. Meio adormecido, lambeu as feridas do passado, sentindo, nos seus lábios, o formigueiro de um rosnar que lhe armava o sangue com o fulgor de uma carícia fecundadora. Um adeus redentor.
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Criado, em 11 de Junho de 2012, na Biblioteca Nacional, às 14H11.
Escrito, directamente, no blogue, na Bilbioteca Nacional, no dia 11 de Junho de 2012, às 14H12, e, concluído, às 15H10 do dia 11 de Junho de 2012.
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