quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

DIÁRIOS - VI

Descer a Avenida da Liberdade, banhado pela luz lânguida dos candeeiros, é descobrir, em cada passo nocturno, a brevidade de um acto desmedido. As sombras que me acompanham, dialogam, em compassos teatrais, no palco amargo de uma vida que se afaga com os carinhos de um corpo imaterial.  O desejo é uma fonte inesgotável de prazeres escondidos que navegam, tranquilos, sobre as águas prateadas do rio Tejo. Partem em contentores de ficções, em cargueiros que se desvanecem  no ócio esbatido do horizonte, entre assombros de partículas sonhadas. Toda esta ventilação sonora pousa sobre o meu olhar, com asas de sono, com o bico da insolência depenicando as amarras que me atracam ao porto da inocência. O que é a noite senão um abraço fleumático de partidas e um arrufo  de encontros imaginativos nos fulgores da madrugada.  Atravesso a sonoridade urbana por entre as lianas de faróis ébrios e fumego composições de passados que osculam uma dimensão emocional e a carga inédita de uma carga convencional.  Nos Restauradores, sou uma maré de sorrisos interiores. Na Estação do Rossio, sou um comboio que chega e outro que parte, passageiro, em inversível cor, de um preto e branco que me comove e me adorna com epitáfios de natureza humana. Rumo ao Chiado, descalçado de memórias, subverto os ouvidos da noite e embebedo-me com as saladas musicais que desencantam, ao mar das tormentas, pedaços de alegrias que o rio engole para que as suas águas tonifiquem a liberdade dos pensamentos que alagam a foz dos dissabores. Sombras desfeitas, a realidade é um pavio que se acende ao comboio das fugas, não de Bach, mas dessa claridade que inventa a sobriedade musculada de uma magia contínua. A vida, que a Lua acende, é uma vela que ilumina e um prazo que a Morte fecunda.
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Escrito e postado, directamente, no blogue, em 20 de Fevereiro de 2013, na Biblioteca Nacional, entre as 14H43 e as 15H50.