terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

NAS MALHAS DE UMA ALUCINAÇÃO MENOR - II

Um voo vertiginoso. Abraçou-se às galochas do tempo e, tal como um trapezista sem rede, protegeu os malabarismos de uma execução arriscada e entregou-se às mãos do puto que era quando, na aldeia em que vivia, seguia os carreiros das formigas carregando, com elas, a reserva alimentícia do inverno castigador. Entretinha-se, com laivos de cinismo, a depositar, nos seus caminhos, obstáculos que lhes dificultavam os percursos até às bocas dos seus refúgios. Adorava asfixiar-lhes as bocas e dava pulos de satisfação ao vê-las ensandecidas. Se lhe apetecia fisgava uma e colocava-a sobre a sua palma da mão. Deixava-a correr pelo seu braço e, em um acesso de raiva incontida, dava-lha uma dentada e tomava-lhe o gosto. Não gostava. Cuspi-a e volvia de regresso a casa e ao regaço de seus pais. Que pais! Amavam-se no campo, em casa, a qualquer hora do dia e da noite, sem que nunca lhe tivessem dado a companhia de um irmão. E para que desejara ter um irmão se a cor das borboletas eram alvo especial dos seus olhos e da colecção que conservara, às escondidas, em um esconderijo, no conforto do palheiro. Ah! como delirava espetar-lhes um alfinete no corpo sensível e vê-las debaterem-se pela liberdade perdida. Que belo arco-íris ele coleccionara! A casa era rodeada por uma quinta onde havia de tudo o que a imaginação esculpia. Gostava de caminhar até ao riacho onde tomava gostosos banhos de água gelada. O frio toldava-lhe o discernimento. Vingava-se, atirando pedras aos peixes que por ali cirandavam, quando não apanhava um e o devorava como se fosse triturado pela fome de um lobo esfaimado. Se o dia o torturasse com a preguiça, dormia no palheiro. Acordava à noite, saía de casa por entre os gemidos afogueados dos pais, ia ouvir as rãs e se o temporal lhe abanasse as ideias encostava-se a uma rocha e delirava com o bailado dos relâmpagos e o ritmo acelarado dos trovões. Adormecia quando o sol despontava e sonhava com as trepadeiras do medo. Acordava aflito e desenhava na gravilha a figura dos pais.  
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Escrito e postado, directamente, no blogue, no dia 19 de Fevereiro de 2013, na Biblioteca Nacional, entre as 14H13 e as 15H09.