sexta-feira, 15 de março de 2013

NAS ASAS DA NOITE

Estou sentado em um degrau de um dos prédios de uma rua do Bairro Alto. Do meu lado esquerdo, encostada à porta, jaz uma Kora; do meu lado direito, sobre o degrau, descansa uma garrafa de sangria que vou bebericando de quando em vez. Os meus olhos, ligeiramenete enevoados, acompanham o estranho movimento ondulante da rua. Tento pensar em algo que me distraia, mas os pensamentos, primeiro, aglomeram-se, incandescentes, depois, esfumam-se como de fossem argolas de fumo, construidas a partir de um cigarro que se imagina, de um tempo que se evapora por entre os passos tumultuosos de corpos que se envolvem com os ritmos da noite, em um frenesim de contos inacabados. Coloco a Kora entre as minhas pernas, afago-lhe o corpo envelhecido pelo uso e permito que os meus dedos perturbem o sossego das suas cordas, sequiosas de propagarem pela noite os poemas sonoros do seu encanto. A Kora e eu somos um corpo único, beleza das belezas musicais que bandos de jovens vão ouvindo, passando, ou sentando-se, à nossa frente, em um semi-círculo de jovialidade noturna. Os meus olhos fixam-se em uma janela de um prédio diante de nós. Abre-se, de par em par, deixa que os sons penetrem de mansinho pelos sonhos de um sono desconhecido. Dos meus dedos soltam-se notas que, de início, flutuam, para, depois, voarem como pássaros em busca dos seus ilimites despovoados, essa sensação de liberdade que envolve as pupilas do meu prazer e desfilam como imagens cinematográficas de um filme em que o argumento é este vagabundear sonoro pelas veias da vida. Há jovens que bebem, há jovens que dançam por dentro das suas memórias difusas, como que espelhando pela noite dentro as sombras vinícolas dos seus desejos mais ardentes. Uma espécie de magia negra apoderou-se do meu corpo que, lentamente, se foi diluindo até que, eu, e a Kora, em metarmorfoses de um tempo desconhecido, abraçámos o voo discreto do corvo de Poe que, sobre o parapeito da janela, segredou aos ouvidos da noite, "nunca mais". E nunca mais, eu, e a Kora, somos.       
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Escrito e postado, directamente, no blogue, em 07 de Março de 2013, na Biblioteca Nacional de Lisboa, entre as 14H09 e as 14H21, em 12 de Março de 2013, entre as 14H02 e as 14H20, em 15 de Março de 2013, entre as 15H43 e as 15H59.

CRITICARTE - XX - CRÍTICA PICTÓRICA

A crítica é o fascínio humano de tudo ver, criticando as aparências de tudo o que não se vê, para que se veja o que nada se sabe. É a liturgia do silêncio nas raízes do ruído. O pintor pinta com os dedos do seu pensamento, ostenta, na finitude das suas obras, a elasticidade de um seu mundo vivificador e de uma marginalidade que seduz uma tempestade de luz que se sente nos sentidos de quem a observa. Tintas, os dedos, o pincel, as mãos, as colagens, o carvão, a aguarela, o pastel, a serigrafia, a musculação de uma arte em tudo o que no cérebro floresce. Obras primas, obras senis, obras fictícias, quem as encadeia no esplendor ou na morte da sua fruição? Será o crítico que lhes inventa a cobiça da sua originalidade ou serão os olhos de quem as analisa, com a pureza da sua sensibilidade, e lhes descobre, nos opúsculos do seu dinamismo estético, a magnificiência, a magnitude de um sentido que, em sentidos diversos, é tocada, profundamente, pelos labirintos sagrados de uma aparição de magia e de fascínio que liberta o espírito de uma nova liberdade criadora: Todos somos críticos, todos somos revelação. E que mundo espantoso se pode desdobrar nas malícias do olhar que o espreita, nas delícias da sensualidade que uma sensibilidade mais criativa impõe à partilha dos sentidos. Eis a fonte que brota dessa família pictórica que nos devora o prazer ou nos destrói o orgulho e o preconceito de lhe desfrutar o ódio ou o amor a uma arte que nos consome a vida com a linguagem universal de uma ilusão que a realidade transforma no fascínio do deleite. Toda a crítica é a visualização de uma imagem que nos decora a razão da nossa racionalidade ser irracional. Toda a obra é um modelo que nos encena o epitáfio do luto que o silêncio ensurdece.    
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Escrito e postado, directamente, no blogue, em 07 de Março de 2013, na Biblioteca Nacional, entre as 13H26 e as 13H32, entre as 15H39 e as 16H01 do dia 08 de Março de 2013, em 15 de Março de 2013, entre as 13H29 e as 13H56.